sábado, 9 de janeiro de 2016

Latinos não são megafones. Favor não confundir.

Deviam ter colocado Luke num banquinho. Metade da cara dele sumiu.
 Eu sou apaixonadíssima por Modern Family. Quero começar o post apontando isso para que não vejam o que eu estou dizendo como a visão de uma hater sobre a série, e sim que levem tudo como a visão de uma sobre a série.

Fazendo jus ao nome, Modern Family conta a história de uma família moderna que possuí três núcleos: os Dunphy, que são Claire (a mãe), Phil (o pai) e os três filhos Haley, Alex e Luke; os Tucker-Prichett, que são Mitchell (Prichett, irmão de Claire), Cameron (Tucker) e a filha adotiva deles Lily; e os Prichett, que são Jay (pai de Claire e Mitchell), Glória (segunda esposa de Jay) e Manny (filho de Glória). Os episódios seguem situações vividas pela família tanto em suas vidas pessoais quanto no âmbito familiar.

Agora vamos ao que interessa. Glória é uma mulher colombiana, interpretada por Sofía Vergara, e descrita durante a série como cabeça quente, dramática e "gritalhona". Inclusive, Glória diz que é loud porque é latina. 

(Abro um parênteses aqui para apontar que a própria atriz ajudou na construção da personagem, já que os roteiristas não souberam fazer a pesquisa completa, e está 100% de acordo com os estereótipos. Uma pena que a maioria das outras pessoas não está.)

Em mais de um episódio, Glória demonstrou tomar decisões precipitadas em diversas situações porque seu sangue ferve com facilidade. Ao falar no telefone com parentes, ela tem o costume de gritar e ofender a eles com palavrões em espanhol. Quando descrevem a cultura da Colômbia, dão ênfase especial nas partes agressivas. Perdi a conta de quantas vezes Glória diz que lidava muito com traficantes (por exemplo) em seu país. Isso sem contar que a personagem em si é extremamente sexualizada, e alvo de muitos comentários machistas vindos de outras mulheres (geralmente da Claire).

Basicamente, o povo latino - e vale aqui lembrar que é chamado de latino quem é ou descende de países latino-americanos, incluindo brasileiros - é passado como um monte de traficantes/criminosos/vândalos, que provém de países com cultura estranha (como é bem destacado num episódio de Natal em que Jay ofende as práticas natalinas colombianas que Glória tenta trazer para a casa) e gente esquisita. 

Ah, e a Glória também é descrita como péssima motorista. Coincidência, né?

Não preciso dizer o quão ofensivo e prejudicial essa imagem é para nós, certo?

Um estudo feito pela National Hispanic Media Coalition a respeito desses estereótipos aponta que muitos não-latinos nos Estados Unidos usam termos como "menos educados" para descrever os latinos que lá residem, além de acreditarem que eles têm filhos demais (como se fosse problema de alguém além dos pais), se recusam a aprender inglês (como se fosse problema de qualquer um além deles mesmos) e tiram o trabalho dos americanos (acho que não vivemos no mesmo planeta). Essas ideias são frequentemente repassadas pela mídia, e abraçadas facilmente pela população.

Num dos únicos episódios que a série fez "tentando" desconstruir a ideia negativa que todos tinham da Colômbia, Jay aparece para Glória com duas passagens para a cidade natal dela e se mostra disposto a colocar de lado os estereótipos e conhecer a cultura colombiana pessoalmente. Logo em seguida, Glória aparece dizendo que não queria fazer aquela viagem, porque tudo o que Jay via de negativo em sua cidade era real.

Além da série tratar xenofobia como piada diretamente, faz isso também de forma indireta com a personagem Lily, filha de Cameron e Mitchell. 

Lily aparece já no piloto de Modern Family como a filha adotiva vietnamita dos Tucker-Prichett. Nas primeiras temporadas, ela foi interpretada pelas gêmeas Ella & Jaden Hiller, mas por decisão dos pais das meninas ambas foram substituídas por Aubrey Anderson-Emmons na terceira temporada.

Num episódio, Lily é convidada para fazer parte de um comercial e Cameron e Mitchell vão às gravações. Lá, eles percebem que a coisa toda é só uma grande ofensa à cultura japonesa, e Cam dá uma super lição de moral nos produtores dizendo, entre outras coisas, que aquilo tudo era um tanto racista e que "lily é vietnamita, não japonesa" e que o diretor não saberia a diferença porque via as duas crianças como "estereótipos intercambiáveis", não seres humanos.

E então ele vai até o palco onde Lily e um garotinho estavam sentados, pega a criança e sai.

Exceto que ele pega a criança errada.

Num dos únicos episódios em que a série teve a chance de demonstrar que os asiáticos não são todos iguais e racismo não é piada, obviamente a parte importante foi transformada em piada.

Esse episódio, em que Cameron diz exatamente que "lily é vietnamita, não japonesa", é um dos que me deixa mais chateada na série inteira. A intenção de demonstrar aquilo que eu disse, que asiáticos não são todos iguais, foi por água abaixo muito antes do roteiro sequer estar pronto. Foi por água abaixo na escalação das atrizes que interpretariam a Lily.

Os pais das gêmeas Ella e Jaden contaram numa entrevista à Woman's Day que viram um anuncio no Craigslist procurando por gêmeas idênticas asiáticas. Nessas palavras.

Ella e Jaden são descendentes de filipinos, e Aubrey (que substituiu elas) possuí ascendência coreana. Essa escolha de atrizes fez com que qualquer tentativa de derrubar certos estereótipos a respeito de asiáticos virasse uma grande ironia. Uma grande piada.

Me dói ver que uma série tão fofinha, com tanto potencial para quebrar tabus, tenha acabado por se tornar um poço de xenofobia e preconceito, que ultrapassa a barreira racial e atinge vários outros assuntos. 


Não quero me prolongar demais no post que já ficou bem maior do que eu esperava, então vou problematizar a falta de representatividade negra, o machismo e os estereótipos ofensivos a respeito de gays e lésbicas numa outra oportunidade. Deixo aqui essa postagem para expressar minha raivinha ao ver temas sérios sendo tratados como piada pela mídia. Tantos programas por aí têm oportunidades perfeitas para conscientizar a população, mas preferem usá-las para satirizar pessoas porque isso não faria com que eles perdessem audiência. 

Para não dizer que não falei das partes boas, deixo vocês com esse gif gracinha da Alex e da Haley, as duas irmãs mais fofas de Modern Family.

Se juntassem as duas numa pessoa só, dava eu.

3 comentários:

  1. Que ótimo post! Assisti Modern Family até metade da quarta temporada (pretendo voltar a ver o resto), e mesmo adorando a série, não posso deixar de concordar com o que você falou. Gosto muito da Glória, mas me incomoda que toda referência a cultura dela seja assim, negativa, estereotipada. (O último episódio que vi foi do batizado do bebê, que a mãe e a irmã dela aparecerem, e claro que as referências a cultura dela iam ser negativas.) Não sabia disso da Lily, e poxa, não acredito que fizeram isso dele trocar as crianças só pra ser engraçado. :/
    Até comemoro quando vejo algum ator latino/negro/asiático em um papel que não seja um esteriótipo. Fico torcendo pra que mais gente se dê conta de como isso é ruim e que possamos ter boas representações.

    Beijos!
    Vestindo o Tédio

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  2. Post maravilhoso. Por isso que te admiro tanto.
    Esse tipo de coisa me desencanta completamente de um seriado ou filme ou livro. Depois que a gente abre os olhos para isso é impossível fechar novamente. Terminei há algumas horas o livro "Não se Apega Não" da Isabela Freitas, o que eu teria amado, não fosse o fato de que TODO MUNDO é branco. TODO MUNDO tem olho verde ou azul (exceto a protagonista que tem olhos castanhos, mas é branca de cabelo loiro liso e escorrido como a mesma gosta de lembrar), TODO MUNDO tem cabelo liso ou cachos perfeitos que contrastam com a pele ALVA (descrição da autora). ARGH. Porra. BRASIL! BÊ ERRE A ESSE I ELE. Isso me decepcionou completamente, porque o livro é tão bom, mas é tão pseudo-europeu.
    E como você, eu também odeio como os seriados americanos sempre (sempre) tem uma latina como empregada que é louca/escandalosa/não tem limites/ultra sexualizada.
    Foda.
    Pior é ver que está por toda parte, em 1% dos casos há uma boa representatividade das minorias. Para as pessoas tudo é piada. Humor não justifica preconceito nem discursos ofensivos.
    Te amo por esse texto e por você ser tão madura <3
    Mil beijos

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  3. Adorei! Eu curto muito Modern Family, eu me divirto horrores assistindo, mas esses pequenos detalhes sempre acabam incomodando. No geral, eu tenho prestado muita atenção nesses "detalhes" em várias das séries que eu assisto. MF poderia fazer muito melhor que isso, especialmente porque já tenta quebrar uns tabus ou ir de encontro a diversos esteriótipos e preconceitos (como Cam/Mitch). Mas eles pesam a mão na hora da Glória. Eu também fiquei chateada que eles não foram viajar pra Colômbia. Espero que até o final da série eles façam algum episódio por lá.

    O engraçado sobre isso dos latinos não quererem aprender inglês, eu sempre lembro de uma frase que era mais ou menos assim never make fun of someone who speaks broken english. It means they know another language" e isso por si só é muito mais do que a gente pode falar sobre a maioria dos americanos, né?

    Enfim, ótimo post!

    Beijão!

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